quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Monitoramento eletrônico e privacidade. "Don't be evil”

Quem aprecia liberdade, desenvolvimento, civilidade, democracia e cidadania precisa acompanhar e, se possível, participar ativamente do debate, em curso no Brasil, sobre privacidade e regulamentação da internet. O cidadão não pode estar sujeito ao monitoramento eletrônico, a ter sua vida devassada por interesses acima da lei. Este tema ganha força no artigo dos deputados federais Newton Lima (PT-SP) e Luiza Erundina (PSB-SP), membros da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara.

Publicado na Folha de S. Paulo (3 de outubro de 2011), o aparece acompanhado de destaque que o sintetiza: “É imperioso estabelecer princípios, direitos e deveres para o uso da rede antes de definir a punição aos delitos cibernéticos”.

Depois de tratar da importância da internet na sociedade e dos seus riscos de violação de garantias constitucionais, os deputados reportam que, há 15 anos, tramitam no Congresso projetos de lei que dispõem sobre a regulamentação do uso da internet em território nacional. “O mais adiantado, o PL (projeto de lei) 84/1.999, tem o deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) como relator”. (Azeredo, depois do “mensalão” do PT, em 2005, acabou envolvido no chamado “mensalão tucano”.)

“PRESUNÇÃO DA CULPA?” - “SINCERO?”

De boa vontade, entre políticos, Newton Lima e Erundina escrevem que “no intuito sincero de coibir a criminalidade na internet, o texto de Azeredo acaba avançando sobre os direitos fundamentais de liberdade de expressão, de informação e de privacidade dos cidadãos.

 “Além disso, no que diz respeito ao direito do consumidor, o PL (com a leitura de Azeredo, escrevo) inverte a lógica do princípio da boa-fé, criando, no entendimento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a figura da "presunção de culpa", que se contrapõe ao princípio constitucional da "presunção da inocência". A obrigatoriedade da guarda de dados pelos provedores por três anos, conforme previsto no projeto de Azeredo, também assusta, pois promove o monitoramento do usuário. Não é à toa que, na Alemanha, a guarda dessas informações é considerada inconstitucional”.

Segundo a Polícia Federal, para investigar os crimes cibernéticos, é preciso apenas uma legislação complementar à já existente. “De outra parte, o governo enviou há pouco ao Congresso sua proposta de marco civil da internet (o PL 2.126/11), que pretende harmonizar a interação entre o direito e a chamada cultura digital”.

“SEGUINDO O DINHEIRO”

Outro texto interessante sobre internet está na “Entrevista da 2ª”, na mesma Folha (dia 3), feita pelo articulista Nelson de Sá, com o jornalista americano Robert Levine, que foi editor da revista "Billboard" (cobertura de música), e antes trabalhou na "Wired", sobre tecnologia. 

Levine, escreve Sá, acreditava que a indústria fonográfica e os produtores de conteúdo em geral deveriam abrir seus produtos, gratuitamente, na internet. 

Até notar, aos poucos, que as empresas de tecnologia cresciam lucrando com os mesmos produtos, mas resistiam a pagar por eles. Passou a "seguir o dinheiro" e levantou que as instituições que defendem abrir tudo na internet são financiadas pelas mesmas empresas de tecnologia. Que o Creative Commons, por exemplo, recebeu US$ 1,5 milhão do Google em 2008 e mais US$ 500 mil em 2009”. 

Levine lança este mês, nos Estados Unidos, o livro "Free Ride" ("Carona Grátis"), que faz um relato detalhado de "como a internet está destruindo a indústria da cultura" e sugere "como contra-atacar". O autor escreve que o conflito em torno da internet não é entre ativistas e empresas de mídia, mas econômico, entre empresas de tecnologia e de mídia, de conteúdo. 

“DE GRAÇA, NÃO”

Ao abordar imprensa e TV, o jornalista americano comenta, por exemplo, que indústria de jornais nos EUA e no Reino Unido sempre foi ligada à publicidade.

“Se você examinar os EUA, a proporção do PIB que vai para publicidade não mudou muito desde 1995. O PIB sobe e desce, mas o percentual se mantém. Você tinha, digamos, essa torta que sustentava jornais, TV, revistas. Agora você corta essa torta pela metade. Google e Facebook ficam com uma metade. Todos os jornais e todas as TVs estão disputando a outra. Eles têm de vender o conteúdo, não têm alternativa. Não sei se vender o conteúdo vai funcionar, mas sei que distribuí-lo de graça na internet não vai. Não para um jornal ambicioso, que gasta muito dinheiro com seu conteúdo. "New York Times", "Wall Street Journal", "Zeit", "Le Monde", alguns poucos em cada país. Não são todos que querem cobrir guerras, esse tipo de jornalismo, mas, se quer ser um grande jornal, tem que cobrar”.

“O PRODUTO E A PLATAFORMA”

Nelson Sá pergunta: “Você (Levine) cita que [o editor] Chris Anderson proclamou, na "Wired", que "a web está morta", porque está se fechando, com dispositivos como Xbox Live e App Store. Os malvados se tornaram as grandes empresas de tecnologia? Elas são o novo alvo?”

Levine responde “sim” e explica que sempre houve dois lados na indústria do entretenimento: o produto e a plataforma. “Hoje, o Google controla a plataforma. Também os provedores de serviços de internet, as teles, são uma plataforma. Apple e Amazon têm plataformas fechadas. E parte do problema é: quem tem o poder, o produto ou a plataforma? Na indústria tradicional de mídia, o produto tem muito poder. (...) A internet foi criada por cientistas que queriam compartilhar informação acadêmica. Para isso, ela é extraordinária. Mas não estamos mais usando a internet para compartilhar pesquisa acadêmica. Estamos usando para serviços bancários, para tudo”.

“PROFESSORES INTELIGENTES”

A entrevista mostra que, além de Chris Anderson, Tim Berners-Lee, o inventor da web, escreveu que a internet está em perigo por causa de "ilhas" como o iTunes (Apple).

“Mas aí eu tenho de perguntar se está em perigo ou se está evoluindo”, afirma o escritor. “Não quero voltar a comprar fitas cassete e discos de vinil. As coisas avançam e mudam. Podemos comprar música no iTunes, no Spotify, mas compramos on-line. Isso não vai voltar atrás. A indústria fonográfica tem de se adaptar, as editoras de livros têm de se adaptar. (...) Por que todas as pessoas que defendem o progresso tecnológico querem que a internet se mantenha exatamente como era em 1995? Tim Berners-Lee e Lawrence Lessig e todos esses caras querem que a internet continue exatamente igual. A internet vai crescer, amadurecer”.
Na pergunta final, o articulista da Folha pondera que Berners-Lee criou a web, e se ele não deveria ser ouvido? Levine admite que Berners-Lee é um cientista, muito inteligente. “Mas eu não quero um cientista decidindo como a sociedade deve funcionar. Para isso, ele não é qualificado. (...) Aliás, eu não sou qualificado também. Isso precisa ser uma conversa política”, comenta o escritor. “Poucos parecem concordar com Tim Berners-Lee. Então, quem se importa com o que ele diz? É um gênio, mas só porque é um gênio da ciência da computação... Ter professores muito inteligentes decidindo como a sociedade funciona nos deu algumas das piores economias do século 20. Se você vai e pede, "estruture uma sociedade", você termina com a União Soviética”, uma referência de Levine que talvez simbolize, deduzo, o totalitarismo do país dos tempos da guerra fria.

“NÃO CONVENCE”

A Folha tratou, em outra oportunidade, do livro de Levine. O texto, de 27 de agosto de 2011, está também no Observatório da Imprensa. É o artigo de Evgeny Morozov, autor de The Net Delusion, escrito originalmente para The Guardian.

Morozov escreve que Robert Levine apresenta argumentos fortes para profetizar um apocalipse cultural. “É um escritor envolvente e instigante, e “Free Ride” tem muito a oferecer”, (...) mas “seu apego a teorias da conspiração - tudo conduz ao Google!- é uma distração”.

“CONTORNAR A CENSURA”

“Embora seja verdade que o Google orienta a formação de política relativa à internet, isso não significa que seus interesses e os do público sempre divirjam, opina Evgeny Morozov. Para mencionar exemplo óbvio, o Google financia projetos cujo objetivo é contornar a censura à web”.

Morozov se pergunta: as tecnologias são de fato ameaça tão grande à cultura? E responde: segundo uma pesquisa recente da BookStats, em 2011 a receita do setor editorial foi 6% mais alta que em 2008 - em parte graças aos livros eletrônicos. O avanço mundial de serviços de locação de vídeo em streaming, como o Netflix, tornou a pirataria menos atraente.

Outro trecho do artigo: “O que Levine propõe não é novo. Ele quer reformar ou reinterpretar as leis que protegem as empresas de internet da responsabilidade pelos atos de seus usuários, e criar novas leis que puniriam os distribuidores e consumidores de material pirateado. Tudo traria consequências inesperadas - vigilância mais intensa,inovação travada e problemas na arquitetura da web -, mas Levine opta por não mencionar nada disso”.


Na Folha, Levine nega que tenha, ele próprio, conflito de interesse. "Veja, meu conflito mais óbvio é que eu ganho a vida escrevendo. É o conflito real: eu ganho a vida com copyright. Eu tenho um contrato de livro". No caso, com Bodley Head, no Reino Unido, e Doubleday, nos EUA, selos da Random House, a maior editora de livros do mundo, parte do grupo alemão Bertelsmann.


PRIVACIDADE

A entrevista de Robert Levine aparece tanto no formato impresso da Folha de S. Paulo quanto na Folha.com. Na internet, é mais ampla, na íntegra.

O texto é ilustrado por uma foto de Thomas Peter, da Reuters (10 de setembro de 2011), expondo uma câmera de papelão e madeira em ato por privacidade digital realizado em Berlim – tema de interesse para todo cidadão. 

Quem usa a internet, quer participar de seu conteúdo, tem de ter cuidado. Há, por trás de conteúdos livres, mesmo relevantes, quem informa de maneira equivocada ou mesmo errada, ou desatualizada. Convém conferir e conhecer riscos.

Exemplo: alguém que posta uma informação baseada em fatos conhecidos e reais. Mesmo assim,  pode, eventualmente, receber advertência de organização de conteúdo aberto, produzido coletivamente. Ela chega à caixa postal eletrônica de uma pessoa física. O aviso parte de pessoa jurídica, mas sem identificação clara de quem o remeteu. Supõe-se que a organização é acionada por terceiros que, presumivelmente, se sentem prejudicados pela postagem, mesmo com o uso de informação correta. É um incomodo. Ou seria, talvez, a questionável "presunção de culpa" que o senador Eduardo Azeredo, citado no começo, quer aplicar aos brasileiros?

Temos, porém, casos evidentemente condenáveis, como o do empresário de um grande magazine que faliu 1999 em São Paulo. Até hoje às voltas com a justiça, o empresário pretendeu denegrir a imagem de um banco, que acabou identificando tanto ele quanto o local de onde despachou e-mails. Era de uma lan-house de Londres, se me lembro bem do noticiário.

Internautas constantes sabem ou descobrem, no uso, que cada computador tem um IP – sigla de Internet Protocol, ou protocolo da internet, com número que pode ser rastreado. Não é difícil chegar nele.
Para terminar: Nelson de Sá recorda que o Google tem um lema, hoje pouco lembrado, "don't be evil", não seja mau. 

Fontes:






TEXTO EDITADO ORIGINALMENTE EM


José Aparecido Miguel, sócio da Mais Comunicação, www.maiscom.com, é jornalista, editor e consultor em comunicação.

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